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Brasil não tem consciência negra

20/11/2023


Brasil não tem consciência negra


Por Daniela Jacinto*, equipe Estudos em Sorocaba & Região


“Mas professora, é só uma cor de pele”, disse um aluno durante a aula de História do Brasil, na qual foi explicado para uma sala de 32 estudantes que a formação do povo brasileiro é uma mistura dos indígenas, africanos e portugueses. Não foi difícil para eles concluírem que sendo assim, corre no sangue brasileiro o sangue do povo negro, e que por isso o racismo no Brasil não faz nenhum sentido, sendo uma grande incoerência as pessoas ficarem comparando tons de pele e julgando umas às outras por conta disso. 


Na opinião daquelas crianças, com idades entre 9 e 10 anos, é muito legal existir pessoas com diferentes tonalidades de pele, diferentes jeitos de ser, diferentes modos de falar, pessoas que usam estilos de roupas diferentes e cabelos diferentes. Viver num mundo igualzinho, segundo elas, seria totalmente sem graça. 


Pegando essa sala de aula como exemplo, é possível fazer um retrato do que acontece com o Brasil. A diversidade de tons de pele dos alunos aponta para uma única origem. Mesmo se a pele for aparentemente branca. É o caso de uma aluna que é branca de olhos esverdeados. Sua genealogia é igualzinha a de um colega de classe que tem pele parda e olhos castanhos escuros. Ambos são da raça negra. A menina é filha de um pai negro e uma mãe branca e o menino é filho de uma mãe negra e um pai branco. Essa mãe negra, por sua vez, é filha de pai negro e mãe indígena. Na sala toda, ou um pai ou uma mãe é da raça negra, ou então uma avó, um avô, um bisavô... E assim é a grande maioria dos brasileiros, para além dos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que classifica as pessoas por sua cor e não pela etnia. 


De acordo com dados de 2022, 42,8% dos brasileiros se declararam como brancos, 45,3% como pardos e 10,6% como pretos. Da soma de pretos e pardos é que se tem o total de 55,9% de pessoas da raça negra no País. É preciso considerar que nem todos os autodeclarados brancos têm de fato pele branca, ainda há muito não reconhecimento da própria cor. Mas como é que pode um país onde a maioria já é estatisticamente autodeclarada de pretos e pardos, sofrer com o racismo? A resposta é: o Brasil não tem consciência negra. Por isso que é preciso uma data para conscientizar sobre o tema. O dia 20 de novembro foi escolhido por ser uma forma de lembrar de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, que foi morto nessa data, no ano de 1695. O nome inteiro da data comemorativa é Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. 

O pesquisador Ademir Barros dos Santos, coordenador da Câmara de Preservação Cultural do Núcleo de Cultura Afro-Brasileira da Universidade de Sorocaba (Uniso), afirma que é possível levar conhecimento para as pessoas, mas a conscientização mesmo, é um processo que depende de cada um. 


Mestre e doutor em Educação pela UFSCar, com pesquisas desenvolvidas sobre africanidades, tendo como foco a religiosidade de matriz africana, Ademir pondera que o mínimo a se fazer é informar e esclarecer as pessoas, porém a conscientização é um processo de internalização daquilo que se sabe. “E saber não implica em aceitar, mas falar sobre o tema é um caminho absolutamente necessário, que pode diminuir o racismo, mas também pode aumentar”, acrescenta.


Conforme o estudioso, quando se tem uma porta fechada é preciso fazer bastante força para abrir, mas do outro lado tem quem não queira que abra e faz também bastante força. “Hoje em dia a gente consegue falar mais sobre a religião de matriz africana, por outro lado tem uma agressividade muito maior.”

Um exemplo, cita ele, é que durante a pandemia uma mãe de santo distribuía comida na rua mas enfrentava neopentecostais dizendo para os mendigos não comerem porque aquela comida estaria macumbada. “Então ao invés deles irem até lá para dar comida, iam dizer isso. Existe mais resistência e mais violência. A gente tenta mostrar o conhecimento, mas a conscientização é algo interno, né?”.


Na opinião de Ademir, o racismo é “uma tremenda de uma burrice”, uma grande limitação. “Ser racista é ser ignorante e fazer questão de permanecer na ignorância, principalmente quando se trata de racismo religioso, porque isso é totalmente anticristo”, diz. “Quando os humanos se tornarem realmente aderentes à humanidade, esse negócio acaba, mas isso está difícil, não só no Brasil como no mundo”, acrescenta.

Preconceito aumenta conforme a tonalidade da pele e os traços 


A doutora em antropologia Jaqueline Lima Santos, consultora em equidade de raça e gênero do Geledés – Instituto da Mulher Negra, lembrou durante palestra realizada recentemente na 1ª edição da Feira Literária do Smetal (Flis), que o racismo na sociedade brasileira sempre foi pautado no estereótipo e não na origem biológica, ou seja, não importa se a pessoa é da raça negra, desde que não pareça ser da raça negra. “É um racismo marcado pela rejeição à aparência, como a cor da pele e os traços negros”, explicou. 


Jaqueline, que também é diretora de projetos em Justiça Racial e de Gênero e doutora em Antrolopologia Social pela Unicamp, disse que as categorias definidas pelo IBGE são resultantes da própria História do Brasil. “Pessoas não brancas são os principais alvos da desigualdade no País, basta analisar os indicadores de Educação, os de Trabalho e Renda e ainda os de violência. O índice de jovens pardos e pretos é muito similar nesses dados”, afirmou.


A justificativa sociológica do IBGE para esse tipo de classificação é que “o que aproxima os pardos mais dos pretos do que dos brancos é o que eles carregam de preto e não o que carregam de branco, porque eles são não brancos”. “E nossa sociedade privilegia pessoas brancas”, observou. 


Jaqueline pontuou que quanto mais escura for a cor da pele de alguém, mais racismo essa pessoa sofrerá. “Se você tem o estereótipo de pessoa negra, como nariz, boca, cabelo, você é tratado como não branco, mesmo se sua pele for mais clara”, complementou.


O pesquisador Ademir Barros ressalta que isso de negativar as pessoas pela tonalidade da pele vem desde 1444, quando o catolicismo europeu começou a dizer que a cor preta era falta de luz divina. “Isso para justificar a escravização promovida pelos reis católicos. A partir daí a pele preta começa a ser carregada de rótulos negativos e cada vez mais passa a existir um racismo sustentado cientificamente e filosoficamente, inclusive por grandes pensadores como Kant, Voltaire, Hegel...”, acrescenta.


Os negros passaram a carregar rótulos de desobedientes e houve a ideação do negro como um ser inferior, complementa Ademir. Quando alguém chama o jogador de futebol Vinícius Júnior e tantos outros negros de macaco, diz o pesquisador, a pessoa pensa que está ofendendo por causa da cor. “Mas tem macaco branco, né? Ou você está tendo racismo contra o macaco ou você está chamando sem saber o motivo. E quem recebe o xingamento também não sabe a fundamentação disso, mas é dizer que os negros são semi simios, ainda não são humanos, são meio gente meio macaco, que estão a meio caminho da evolução da humanidade. Então se os negros não têm condição de aprender a conviver, eles não são confiáveis. Um monte de rótulo vem nas costas de todo mundo. É isso que a sociedade aprendeu a dizer dos negros. E como é que você vai fazer?”, lamenta o estudioso.


A questão é tão complexa que envolve até mesmo documentos. Na certidão de nascimento de Ademir, por exemplo, consta que a cor de sua pele é branca. Ele explica que antigamente era assim. Achavam que era ofensa declarar alguém como negro. “Então fiquei como branco e católico, era obrigado ser católico”, diz.


Há pouco tempo passou-se a questionar isso. “Como assim branco, põe pardo pelo menos, né? No IBGE eu me classifico como pardo, que é o não branco, é o que sobra. Internamente sou negro, é uma condição de autorreconhecimento. Tem pretos que não se reconhecem como negros, né? A gente vê por aí umas coisas estranhas que acontecem.”


Ele faz questão de afirmar: “Eu me descrevo um negro, sobretudo, além de tudo, apesar de tudo. Sou fundamentalmente negro. Tenho a pele mais clara, tenho antepassados europeus na minha ascendência, mas a única prova disso é minha cor de pele. Eu sou um negro que procura saber o porque dessa porcariada toda e procura combater não com violência mas com consciência, a consciência negra”.


Questionado se seria possível comentar sobre o que é sentir a dor do racismo, ele fala: “A dor do racismo é indescritível, totalmente indescritível porque se convive com ela desde a hora que acorda até a hora que dorme. É recorrente que as mães negras têm de dar muito mais conselhos para seus filhos, pra defendê-los da mortandade. Mata-se muito mais negros, independente de ser bandido ou não. As balas sempre encontram um corpo preto para se alojarem. Essa dor passa a fazer parte da personalidade do povo negro, então é um medo imenso”.


Ademir conta que tem uma poesia que fala sobre o tiro que acerta a pele-alvo e não a pele alva. “A pele alva nunca encontra a bala perdida, mas a pele-alvo encontr a bala perdida, porque ela não está perdida, está bem direcionada. A dor do racismo é a dor de você não saber se vai permanecer vivo simplesmente porque é negro. É só um exemplo, porque não dá para descrever. É mais ou menos isso.”

(Re)conexão com a ancestralidade 


“Para mim hoje, Conciência Negra é (re)conexão do povo brasileiro com a sua ancestralidade africana. Eu gosto da frase de Conceição Evaristo para esse dia/mês trazer nossas reflexões: Nós não escrevemos para adormecer os da casa-grande, pelo contrário, é para acordá-los dos seus sonos injustos”, afirma pesquisadora da cultura afrobrasileira com foco em quilombos Andréia Oliveira. 

Conforme ela, é preciso fazer desse momento um dia para escancarar o genocídio contínuo do jovem negro das periferias, os apagamentos e exclusões baseados no racismo estrutural que ainda atravessa o País. “É uma data importante para lembrarmos que é preciso fazer valer a lei para o ensino da História da África e do afrodescendente nas escolas pois ela ainda está entrando pelas beiradas no currículo escolar”, aponta Andréia, que entende bem sobre como tem sido nas escolas pois é professora de História há 30 anos na rede pública estadual. “O mês de novembro é o momento de maior visibilidade, mas essa consciência, reflexão, tem que ser diária, estar o ano todo dentro do contexto do cotidiano escolar, para que alguma transformação nesse processo de educação antirracista aconteça”.


Andréia é uma estudiosa da história afro-brasileira e envolvida com projetos de autoconhecimento e reconhecimento da ancestralidade. Foi uma das coordenadoras do Centro Cultural Quilombinho, em Sorocaba, que promove junto a estudantes o resgate de sua própria origem, promovendo a autoestima e cidadania, e é uma militante na sala de aula na escola estadual. Mestre em Estudos da Condição Humana pela UFSCar, Andréia desenvolveu pesquisa sobre o protagonismo das matriarcas do quilombo Cafundó, de Salto de Pirapora e recentemente esteve em Angola (de onde foram trazidos ao Brasil os africanos para serem escravizados), a convite da comunidade Cafundó para uma imersão cultural em Benguela onde conheceu aldeias e viu o local de onde saíam os navios negreiros. “Foi um projeto amparado pelo governo de Angola e que ajudou a finalizar a minha tese de mestrado”, conta.


Andréia lembra que a ideia de raça é uma construção social dentro de um contexto de eugenia, em que o branco se coloca acima, se achando superior, e prega a destruição dos outros grupos. Por isso, ela não usa esse termo. “A única raça existente é a humana”, enfatiza. 


Conforme a pesquisadora, saber colocar os termos de forma correta ajuda no esclarecimento das pessoas. “Nunca usar índios para se referir aos indígenas ou povos originários pois índio é palavra pejorativa, assim como os negros não podem ser colocados como escravos e sim povos escravizados, há uma grande diferença pois de outra forma você acaba reafirmando o racismo estrutural, afinal eles não nasceram para ser escravos, eles foram escravizados, é diferente.” A palavra “escravo”, afirma ela, vem do latim "sclavus" que significa o povo que se denominava eslavo e habitava a Europa do Leste, e era vendido como escravo.


O extermínio do povo negro foi e ainda é um projeto político social do Brasil, que discrimina, mata e tenta embranquecer a cor. De acordo com Andréia, as pessoas acabam, por vezes sem ter consciência, entrando nesse processo de embranquecimento, negando a sua ancestralidade, outras vezes até consciente, mas na tentativa de se salvar. “O pensamento é: Como posso escapar da minha ancestralidade para pertencer a esse meio que tem visibilidade, que tem aceitação?”, diz.


O negro sabe onde dói, afirma Andréia. “Ele ri de algumas ‘brincadeiras’ como por exemplo ser chamado de ‘neguinho’ para não ser excluído do grupo. Finge que não liga.”

Como combater tudo isso? “Positive tudo que vem do negro. Positivar é a palavra-chave. Quando o aluno de pele branca com olhos bem azuis ouve histórias positivas do povo negro, você vê aquele branquinho levantar a mão e falar que tem um avô preto que ele ama muito e se fosse outro contexto, negativando, ele nunca levantaria a mão, mas silenciaria porque ele iria passar vergonha perto dos colegas.”


Quando se positiva a história africana e indígena, é possível ver os alunos estufando o peito e com os olhos brilhando. “Olha eu estou aí nessa história bonita.”


Sim porque o povo africano também tem suas histórias de reis, príncipes e princesas para contar, além do que os trabalhadores que aqui vieram para ajudar na construção do Brasil, tinham conhecimento e esse conhecimento que ajudou nas construções de igrejas, casas, ferrovia. Engenharia, mecânica, elétrica, construção civil, arquitetura, arte, entre tantos saberes, vieram junto com esse povo e o principal: o afeto. As palavras carinhosas que usamos, no diminutivo, vieram da mãe preta, que cuidava dos filhos da sinhazinha. Apesar do Brasil ter ainda um longo caminho pela frente, Andréia vê que há um futuro possível. “Hoje em dia já temos criança negra que usa seu black e tranças com maior orgulho. Eu ainda não verei o racismo ser extinto mas acredito que num futuro mais longínquo isso aconteça.” 


* Daniela Jacinto é jornalista e professora da rede pública de ensino

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